17 de fev. de 2014

Tai Chi Chuan: Arte marcial ou prática para a saúde?

Artigo publicado no Boletim Anual Edição nº2 – Março/2011 da WCTA-Br


























Por: Daniel Luz – Acupunturista e Instrutor de Taijiquan certificado pela WCTA-Br

O título deste artigo é uma pergunta propositadamente equivocada, porém útil na medida em que revela como as cisões típicas de nossa cultura informam a nossa maneira de entender e se relacionar com práticas originárias no Oriente. Por que digo que a pergunta é equivocada? Porque situa “arte marcial” e “prática de saúde” numa oposição ingênua, estranha à própria cultura onde se formou o tai chi chuan (doravante “taijiquan” na notação pinyin dos sons do mandarim).

Então vejamos: a palavra “wu”, que significa “marcial, militar, guerreiro”, é representada por um logograma composto por dois elementos pictográficos: “zhi”, um pé sem marcas indicativas de movimento, significando “parar, limite” e “ge”, uma alabarda (composta por “yi”, “estaca”, acrescido de “yi”, um traço horizontal que representa a lâmina afixada ao cabo). A ideia é “deter a agressão”. Dessa leitura infere-se que, na cultura tradicional chinesa (falando a grosso modo) a “arte marcial” por definição é a arte de “ parar as alabardas” ou limitar o conflito”.

Ocorre que na medicina chinesa a vida do homem não é vista como o funcionamento de um (bio)mecanismo, mas sim como o gerenciamento político de um estado imperial, em que o Coração ocupa o papel do Imperador. Este coordena os demais “atores políticos” que são os Zang fu (literalmente “palácios e solares (no sentido de residências)”, comumente traduzidos por “órgãos e vísceras”. Há rivalidades e afinidades naturais entre os zang fu, que interagem constantemente: o Pulmão, associado ao elemento metal, “ataca” o Fígado, associado ao elemento madeira, e modera seu crescimento, como o metal poda a madeira; por sua vez, é ele mesmo “atacado” pelo coração, que encarna o elemento fogo, o qual derrete o metal e assim impede que a ação do Pulmão passe de “moderação” à “destruição”.

Isto significa que, na medicina chinesa, mesmo na ordem vital saudável, há tensão constante; o que acontece é que ela é habilidosamente manejada para não se sair da harmonia e cair na enfermidade.

Portanto, trata-se aqui de uma cultura em que a arte do guerreiro não é trucidar o adversário, fazendo-o cessar de existir, mas sim detê-lo ou limitar a sua capacidade de agressão. Por outro lado, “saúde” não remete á ideia da paz da inação, da cessação dos conflitos: estes são vistos como inerentes à vida, e para se manter na saúde é preciso habilidade para administrá-los.

Demonstramos, portanto, que situar o taijiquan num esquema dicotômico tipo “arte marcial” X “ginástica para saúde” é equivocado. O taijiquan pode desempenhar inúmeros papéis sem se descaracterizar a tal ponto que se possa dizer “isso não é taijiquan”. Só para dar alguns exemplos, taijiquan é, ou pode ser, uma modalidade de atletismo (é uma especialização da faculdade de educação física, na China); uma prática de saúde; uma arte marcial; uma série de movimentos de alto valor estético; uma prática coletiva que cria um sentimento de comunidade e pertencimento; um elemento chave numa via de crescimento espiritual (budista, taoísta, católica...) e nenhuma dessas opções é mutuamente excludente. O taijiquan é uma arte de vastas possibilidades, singularmente acolhedora e generosa para com seus adeptos; tentar enquadrá-lo numa definição estreita é tão sensato quanto tentar enfiar um tigre numa gaveta.

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